CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E RECEPÇÃO PELA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em arguições de descumprimento de preceito fundamental para declarar a não recepção da expressão "para o interrogatório" constante do art. 260 (1) do CPP, e a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado ((Informativo 905)).
Brasília/STF - 14 de junho de 2018
O Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em arguições de descumprimento de preceito fundamental para declarar a não recepção da expressão "para o interrogatório" constante do art. 260 (1) do CPP, e a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado ((Informativo 905)).
O Tribunal destacou que a decisão
não desconstitui interrogatórios realizados até a data desse
julgamento, ainda que os interrogados tenham sido coercitivamente
conduzidos para o referido ato processual.
Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes (relator).
De início, o relator esclareceu que a hipótese de condução coercitiva
objeto das arguições restringe-se, tão somente, àquela destinada à
condução de investigados e réus à presença da autoridade policial ou
judicial para serem interrogados. Assim, não foi analisada a condução de
outras pessoas como testemunhas, ou mesmo de investigados ou réus para
atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento.
Fixado o
objeto da controvérsia, afirmou que a condução coercitiva no curso da
ação penal tornou-se obsoleta. Isso porque, a partir da Constituição
Federal de 1988, foi consagrado o direito do réu de deixar de responder
às perguntas, sem ser prejudicado (direito ao silêncio). A condução
coercitiva para o interrogatório foi substituída pelo simples
prosseguimento da marcha processual, à revelia do acusado [CPP, art. 367
(2)].
Entretanto, o art. 260 do CPP — conjugado ao poder do juiz
de decretar medidas cautelares pessoais — vem sendo utilizado para
fundamentar a condução coercitiva de investigados para interrogatório,
especialmente durante a investigação policial, no bojo de engenhosa
construção que passou a fazer parte do procedimento padrão das
investigações policiais dos últimos anos. Nessa medida, as conduções
coercitivas tornaram-se um novo capítulo na espetacularização da
investigação, inseridas em um contexto de violação a direitos
fundamentais por meio da exposição de pessoas que gozam da presunção de
inocência como se culpados fossem.
Quanto à presunção de não
culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), seu aspecto relevante ao caso é a
vedação de tratar pessoas não condenadas como culpadas.
A
condução coercitiva consiste em capturar o investigado ou acusado e
levá-lo, sob custódia policial, à presença da autoridade, para ser
submetido a interrogatório. A restrição temporária da liberdade mediante
condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não é
tratamento que possa normalmente ser aplicado a pessoas inocentes.
Assim, o conduzido é claramente tratado como culpado.
Por outro
lado, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), prevista entre os
princípios fundamentais do estado democrático de direito, orienta seus
efeitos a todo o sistema normativo, constituindo, inclusive, princípio
de aplicação subsidiária às garantias constitucionais atinentes aos
processos judiciais.
No contexto da condução coercitiva para
interrogatório, faz-se evidente que o investigado ou réu é conduzido,
eminentemente, para demonstrar sua submissão à força. Não há finalidade
instrutória clara, na medida em que o arguido não é obrigado a declarar,
ou mesmo a se fazer presente ao interrogatório. Desse modo, a condução
coercitiva desrespeita a dignidade da pessoa humana.
Igualmente, a liberdade de locomoção é vulnerada pela condução coercitiva para interrogatório.
A Constituição Federal consagra o direito à liberdade de locomoção, de
forma genérica, ao enunciá-lo no “caput” do art. 5º. Tal direito pode
ser restringido apenas se observado o devido processo legal (CF, art.
5º, LIV) e obedecido o regramento estrito sobre a prisão (CF, art. 5º,
LXI, LXV, LXVI, LXVII). A Constituição também enfatiza a liberdade de
locomoção ao consagrar a ação especial de “habeas corpus” como remédio
contra restrições e ameaças ilegais (CF, art. 5º, LXVIII).
A
condução coercitiva representa uma supressão absoluta, ainda que
temporária, da liberdade de locomoção. O investigado ou réu é capturado e
levado sob custódia ao local da inquirição. Portanto, há uma clara
interferência na liberdade de locomoção, ainda que por um período
determinado e limitado no tempo.
Ademais, a expressão “para o
interrogatório”, constante do art. 260 do CPP, tampouco foi recepcionada
pela Constituição Federal, na medida em que representa restrição
desproporcional da liberdade, visto que busca finalidade não adequada ao
sistema processual em vigor.
Por fim, em relação à manutenção
dos interrogatórios realizados até a data desse julgamento, mesmo que o
interrogado tenha sido coercitivamente conduzido para o ato, o relator
consignou ser necessário reconhecer a inadequação do tratamento dado ao
imputado, não do interrogatório em si. Argumentos internos ao processo,
como a violação ao direito ao silêncio, devem ser refutados.
Assim,
não há necessidade de debater qualquer relação da decisão tomada pelo
STF com os casos pretéritos, inexistindo espaço para a modulação dos
seus efeitos.
O ministro Celso de Mello acrescentou que a
impossibilidade constitucional de constranger-se o indiciado ou o réu a
comparecer, mediante condução coercitiva, perante a autoridade policial
ou a autoridade judiciária, para fins de interrogatório, resulta não só
do sistema de proteção das liberdades fundamentais, mas, também, da
própria natureza jurídica de que se reveste o ato de interrogatório.
Referido ato processual é qualificável como meio de defesa do acusado,
especialmente em face do novo tratamento normativo que lhe conferiu a
Lei 10.792/2003. Essa particular qualificação do interrogatório como
meio de defesa permite que nele se reconheça a condição de instrumento
viabilizador do exercício das prerrogativas constitucionais do
contraditório e da plenitude de defesa.
De todo modo, a ausência
de colaboração do indiciado ou réu com as autoridades públicas e o
exercício da prerrogativa constitucional contra a autoincriminação não
podem erigir-se em fatores subordinantes da decretação de prisão
cautelar ou da adoção de medidas que restrinjam ou afetem a esfera de
liberdade jurídica do réu.
Por fim, afirmou que não haveria como
concluir que a condução coercitiva do indiciado ou do réu para
interrogatório, independentemente de prévia e regular intimação,
justificar-se-ia em face do poder geral de cautela do magistrado penal.
Isso porque, diante do postulado constitucional da legalidade estrita em
matéria processual penal, inexiste, no processo penal, o poder geral de
cautela dos juízes.
Vencidos, parcialmente, os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia (Presidente).
O ministro Alexandre de Moraes julgou parcialmente procedente o pedido
formulado nas arguições para declarar a inconstitucionalidade parcial,
sem redução de texto, do art. 260 do CPP, unicamente para excluir a
possibilidade de decretação direta da condução coercitiva sem a prévia
intimação com base no poder geral de cautela do juiz.
Considerou,
assim, legitima a utilização do instituto da condução coercitiva para
interrogatório, porém, desde que o investigado não tenha atendido,
injustificadamente, prévia intimação, permitida a participação do
defensor do investigado e resguardados os direitos ao silêncio e a
não-autoincriminação.
O ministro Edson Fachin julgou parcialmente
procedente o pedido para atribuir interpretação conforme a Constituição
Federal ao art. 260 do CPP no sentido de ressalvar a possibilidade de
decretação judicial e fundamentada da condução coercitiva em
substituição a medidas cautelares típicas mais graves, como a prisão
preventiva ou a prisão temporária, desde que integralmente presentes os
requisitos legais e constitucionais dessas medidas.
Ademais,
declarou a inconstitucionalidade da interpretação ampliativa do
dispositivo impugnado, impondo-se a prévia intimação e o não
comparecimento injustificado do intimado para a realização da condução
coercitiva.
Os ministros Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia (Presidente) acompanharam o ministro Edson Fachin.
(1) CPP: “Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o
interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não
possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua
presença.”
(2) CPP: “Art. 367. O processo seguirá sem a presença do
acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar
de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de
residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.”
ADPF 395/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 13 e 14.6.2018. (ADPF-395)
ADPF 444/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 13 e 14.6.2018. (ADPF-444)
Fonte:Migalhas
Fonte:Migalhas